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“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
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“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.
O início fabuloso de A Metamorfose, de Franz Kafka, é imortalizado na história por causar horror e fascínio nas pessoas, simultaneamente. O romance se tornou um clássico germânico do último século, porém permanece com uma filosofia viva e atual até os dias atuais. A falta de emoção de Kafka em vida real foi contrariada nos seus escritos, e em A Metamorfose, apesar das peculiaridades autobiográficas, Kafka retrata o homem moderno do início do século XX com um talento invejável.
A história de A Metamorfose se passa na Europa dos anos 1910, da Belle Époque, que de bela, para gente comum como Gregor Samsa, não tinha nada. Gregor era caixeiro-viajante, e a profissão, para ele, preenchia toda sua vida. Isto porque ele trabalhava não só por si próprio, mas pelo pai, inválido e detentor de uma dívida enorme a qual Gregor procura sanar, pela mãe, velha, asmática e incapaz, e pela ingênua irmã. Toda a família depende do trabalho de Gregor para sobreviver, por isso confiavam nele, apoiavam-no. Estranhamente, até mais do que isso: parasitavam-no, tornando-o escravo do trabalho. Até o dia que ele acordou transformado num inseto. A partir dessa metamorfose física, a vida da família sofre um abalo enorme. O pai deve voltar a trabalhar, a casa deve ser disponibilizada a fim de receber hóspedes, até mesmo a irmã tem obrigação de arranjar um emprego. Mas mais importante do que isso, as relações intrafamiliares sofrem alterações significativas. Para o pai, Gregor passa a ser um “peso morto”, imprestável. Para a mãe, objeto de repulsa. Para a irmã, amorosa mesmo depois da transformação, também passa a ser um empecilho. Agora, ele era o parasita. A metamorfose física de Gregor originou uma metamorfose de valores na família, inclusive para o próprio Gregor. Este que aceita sua posição de inseto, só lamenta pelo fato de não poder mais trabalhar e suportar sua família. Com o passar do tempo, Gregor cai numa solidão sem volta, influenciado pelo cada vez mais evidente desprezo das pessoas pela sua forma, e morre de maneira reflexiva, pensando no mundo que o consumiu e que desejou seu fim. Depois da morte solitária de Gregor, a família Samsa desponta para a vida, levantando do seu mormaço casual.
Gregor Samsa, depois de transformado, não se pergunta o porquê daquilo tudo. Talvez o próprio Gregor gostaria de uma fuga da sua vidinha, ou ainda isso aconteceu porque sua vida já havia sido desperdiçada. Isso é uma questão filosófica muito profunda, que não temos como objetivo esclarecer. Porém, é um belo objeto de reflexão.
Kafka evidencia no jovem caixeiro viajante as condições e as ideias que perpassavam o homem comum e trabalhador do início do século XX. A coisificação (Marx chamara isso de fetichização) do trabalho, a intransigência dos empregadores, e a rotina mais do que fixa dos empregados são exemplos. Gregor praticamente abdicara da sua vida particular para sustentar a família, que não via nisso nada desfavorável à pessoa de Gregor. E aqui está a espinha dorsal da filosofia kafkiana: o isolamento do homem se dá pelo conjunto da sociedade e da família, conjunto este que sufoca e afasta a pessoalidade das pessoas do seu âmbito. Isso fica muito claro quando analisamos a biografia do autor. Marcado pela influência de sua estirpe, Kafka descreve as relações que o atormentaram na vida real em uma história aparentemente fictícia, mas que, resguardados os seus aspectos surrealistas, poderia ser totalmente verdadeira. Como, de fato, foi para muitos Gregors Samsas, que não se viram transformados em insetos fisicamente, mas muitas vezes se sentiram esmagados como um pela sociedade voraz que os cercava.
A metamorfose de Gregor Samsa pode ser abordada sob várias vertentes. A mais curiosa é a de que o personagem não deve ser tratado como vítima, mas como vilão. A sua postura de carregar a família nas costas anterior à metamorfose ajudava-a financeiramente, mas inibia seu desenvolvimento, talvez devido à acomodação. Então, a saída de Gregor desse campo teria sido benéfica sob o ponto de vista familiar, atuando como um reequilíbrio nessas relações, já não ligadas ao personagem com laços de dependência.
Adaptação de Peter Kuper.
Kafka nos brinda com sua obra literária. Ao mesmo tempo particularista, por conter vários aspectos auto-biográficos, ela é universalista na medida que trata das angústias e de obstáculos encarados por homens comuns. A complexidade desta obra deixa espaço para muitas interpretações diferentes. Diferentes, não corretas ou incorretas. A filosofia kafkiana ainda guarda alguns de seus segredos. Por isso mesmo, ela se trata de um vasto campo de estudo.
Por fim, dezoito dos maiores escritores vivos do Brasil, a convite do caderno Mais! da Folha de São Paulo, reescreveram o início mitológico de A Metamorfose. Transcrevemos os escritos de dois autores que participaram do desafio:
Kafka em Curitiba – Cristovão Tezza“Quando K. Pietoski acordou aquela manhã gelada, depois de um sonho esquisito, percebeu – primeiro a ausência da mão, depois a dureza na alma -, percebeu que estava transformado em alguma coisa desagradável que lembrava um inseto. Não exatamente um choque, porque tudo se transformara com o corpo, até a memória – mas uma curta aflição, quase uma apenas pergunta: se conseguisse se erguer, alguém descobriria?”Memorial de sonhos intranqüilos – Moacyr Scliar
“Estava clareando o dia, e os sonhos mostravam-se cada vez mais intranqüilos. Daqui a pouco Gregor Samsa vai acordar, diziam, e quem sabe o que lhe acontecerá então? Não, ele não deve despertar, ele deve ficar entre nós, aqui está seguro, aqui nenhum perigo o ameaça – mas como faremos para retê-lo, para impedir que abra os olhos? É tênue a matéria de que somos feitos, lamentavam-se os sonhos, é fraco o nosso poder, sobretudo por causa de nossa intranqüilidade, esta intranqüilidade que assusta o pobre Gregor Samsa, que o expulsa para o limiar da vigília onde ele fica, indeciso entre as sombrias visões da noite e a enigmática realidade com que em breve se verá confrontado. Seria bom se pudessem convocar uma assembléia de sonhos, intranqüilos ou não; se pudessem discutir em profundidade as noites de Gregor Samsa e também seus dias; se pudessem estabelecer uma agenda de negociações, uma estratégia de ação, um programa de metas. Seria bom se constituíssem um cartel de sonhos, ou um consórcio de sonhos, ou uma holding de sonhos. Mas nem tinham tempo para isto, nem sabiam como fazê-lo. Havia uma outra possibilidade: e se contassem uma história a Gregor Samsa? Uma história bem narrada, ainda que impressionante? Uma história que o convencesse de que não há nenhuma diferença entre sonho e realidade? Uma história que o mantivesse adormecido até que a felicidade reinasse soberana sobre a terra, ou alternativamente, até o Dia do Juízo? Os intranqüilos sonhos não sabiam, contudo, como contar essa história. Havia quem pudesse fazê-lo, alguém que conheciam bem: Franz Kafka. Mas Franz Kafka estava dormindo. Quando acordasse seria tarde demais.”
Kafka em Curitiba – Cristovão Tezza“Quando K. Pietoski acordou aquela manhã gelada, depois de um sonho esquisito, percebeu – primeiro a ausência da mão, depois a dureza na alma -, percebeu que estava transformado em alguma coisa desagradável que lembrava um inseto. Não exatamente um choque, porque tudo se transformara com o corpo, até a memória – mas uma curta aflição, quase uma apenas pergunta: se conseguisse se erguer, alguém descobriria?”Memorial de sonhos intranqüilos – Moacyr Scliar
“Estava clareando o dia, e os sonhos mostravam-se cada vez mais intranqüilos. Daqui a pouco Gregor Samsa vai acordar, diziam, e quem sabe o que lhe acontecerá então? Não, ele não deve despertar, ele deve ficar entre nós, aqui está seguro, aqui nenhum perigo o ameaça – mas como faremos para retê-lo, para impedir que abra os olhos? É tênue a matéria de que somos feitos, lamentavam-se os sonhos, é fraco o nosso poder, sobretudo por causa de nossa intranqüilidade, esta intranqüilidade que assusta o pobre Gregor Samsa, que o expulsa para o limiar da vigília onde ele fica, indeciso entre as sombrias visões da noite e a enigmática realidade com que em breve se verá confrontado. Seria bom se pudessem convocar uma assembléia de sonhos, intranqüilos ou não; se pudessem discutir em profundidade as noites de Gregor Samsa e também seus dias; se pudessem estabelecer uma agenda de negociações, uma estratégia de ação, um programa de metas. Seria bom se constituíssem um cartel de sonhos, ou um consórcio de sonhos, ou uma holding de sonhos. Mas nem tinham tempo para isto, nem sabiam como fazê-lo. Havia uma outra possibilidade: e se contassem uma história a Gregor Samsa? Uma história bem narrada, ainda que impressionante? Uma história que o convencesse de que não há nenhuma diferença entre sonho e realidade? Uma história que o mantivesse adormecido até que a felicidade reinasse soberana sobre a terra, ou alternativamente, até o Dia do Juízo? Os intranqüilos sonhos não sabiam, contudo, como contar essa história. Havia quem pudesse fazê-lo, alguém que conheciam bem: Franz Kafka. Mas Franz Kafka estava dormindo. Quando acordasse seria tarde demais.”
(Decidi antecipar o cultural da semana, devido a provável falta de tempo no fim de semana. Divirtam-se.)
otimo esses comentarios obre a obra de kafka.
ResponderExcluirforam bastante úteis!
Belo post!! Essa obra é mesmo bastante reflexiva, indispensável. Fantástica!
ResponderExcluirMuito bom, parabéns.
ResponderExcluirAcabei de ler a metamorfose e me encontrei muito angustiado com a história. Foi triste perceber como se parasita a quem se ama e se joga fora esse alguém quando não há mais nada para sugar dele.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluireu li por q era trabalho de escola e acabei gosta no e muito bom
ResponderExcluirEu escrevi o meu próprio início de A metamorfose:
ResponderExcluirToda aquela preocupação de Gregor Samsa em analisar as contas da sua família após o jantar, aliada ao fardo de ser a base financeira para todos ao seu redor, precederam uma terrível noite de sono , onde o estreito caminho aos pesadelos que rodeiam todos os homens parece a única opção. Acordou com uma alegria ilusória, acreditando ter se livrado das mazelas oníricas, tudo se rompeu ao avistar o que parecia ser uma pata saindo do seu lençol, principiou o medo, findou com terrível horror ao perceber que podia movimentá-la como se esse membro o pertencesse.
Perguntou a si mesmo como se estivesse tentando fugir de uma constatação óbvia: - Eis que eu sou um inseto?
Donec eris felix, multos numerabis amicos
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirAlguém sabe o espaço da história onde aconteceu ?
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